Textos em jornais e entrevistas
Textos em jornais e entrevistas
sexta-feira, 18 de outubro 2019, às 13h15
atualizado em sexta-feira, 18 de outubro 2019, às 14h02
"Fica manifesta a crença de que, uma vez grávida, uma mulher automaticamente se transforma em 'mãe', nada mais importando, muito menos ela mesma"
Os canais de TV, as rádios e a imprensa em geral anunciaram, no dia 6 de outubro, a prisão em flagrante de uma universitária – ela teria ajudado, nos últimos três anos, mais de 200 gestantes a interromper a gravidez. No momento da prisão, a universitária estava prestes a realizar dois abortos. Do modo como foi construída, a notícia acentuou a atitude criminosa da mulher diante da lei, o risco que as gestantes correram, os efeitos colaterais dos medicamentos (alguns de uso veterinário), o estágio das gestações (algumas em fase avançada) e, finalmente, as penalidades previstas para a universitária e para as grávidas. Tudo para que o destinatário da notícia se visse diante de um cenário de horror.
Mais uma vez, portanto, não foram a público os motivos das mulheres que, diante de uma gravidez indesejada e da falta de alternativas legais, decidem recorrer a procedimentos clandestinos e arriscados para interrompê-la. Não se falou da legislação brasileira, absurdamente restritiva, que condena mulheres a procurar procedimentos como os que apareceram detalhadamente descritos nos jornais. Diferentemente do que ocorre na maioria dos países desenvolvidos, a lei no Brasil só não pune abortos em casos de estupro, de risco de vida da grávida e de anencefalia fetal.
Humilhada diante dos que a acusam, a “criminosa” se esconde e esconde sua história, suas razões.
Quem são essas 200 mulheres? Qual a história de cada uma? Que religião elas professam? Quais seus projetos e esperanças, suas dificuldades e limites? Têm filhas ou filhos? Que motivos estão por trás das decisões que tomaram? Nada disso pode ser trazido ao conhecimento público porque acredita-se que a “criminosa” deva ser punida – ou, alternativamente, “perdoada” por sua atitude irrefletida, como se faz com uma criança ou com um louco. Nunca, porém, ouvida. Humilhada diante dos que a acusam, a “criminosa” se esconde e esconde sua história, suas razões. E tudo continua igual ao que sempre foi, a lei patriarcal nos condena hoje, como ocorria em 1940. Afinal, somos seres infantis e, portanto, devemos ser protegidas de nós mesmas e de nossa insensatez ao pensar em interromper uma gravidez.
Duzentas mulheres procuraram, de livre vontade, a universitária em um período de três anos. Daria o que pensar. Mas não se pensa. Nem a legislação brasileira, nem as reportagens, nem nossos “representantes” políticos querem considerar a experiência real da gravidez e da maternidade. Fica manifesta a crença de que, uma vez grávida, uma mulher automaticamente se transforma em “mãe”, nada mais importando, muito menos ela mesma. É comum justificar essa ideia biologicamente, dizendo, por exemplo, que hormônios “disparam”, e a mulher grávida naturalmente assume, feliz, a sua condição. No entanto, se considerarmos as mulheres reais, em vez da imagem que delas produz a ideologia patriarcal, o que se vê é a diversidade de significados da gravidez. Uma gravidez pode ser a realização difícil de uma longa expectativa ou uma boa e inesperada surpresa; pode ser entendida como um dever que não se pode deixar de cumprir; pode até ser um acontecimento vivido com indiferença e aceito como outros acontecimentos inevitáveis da vida, um filho que o destino manda, como manda tantos outros eventos marcados pela desesperança. Pode também ser uma verdadeira tragédia para uma mulher. O que define as experiências humanas é a diversidade de sentido que elas têm, e a gravidez é experiência de um ser humano, ou pelo menos assim acredito eu.
O que define as experiências humanas é a diversidade de sentido que elas têm, e a gravidez é experiência de um ser humano.
Ou seja, na vida real, grávidas não se transformam automaticamente em mães e, por motivos sérios e pessoais, muitas escolhem, em determinado momento de sua vida, interromper a gestação. Sabemos que, no Brasil, cerca de 20% das mulheres entre 18 e 39 anos já interromperam pelo menos uma gravidez. A Pesquisa Nacional de Aborto 2016 entrevistou 2.002 mulheres alfabetizadas de 18 a 39 anos. Destas, 251 (13%) declararam já ter feito ao menos um aborto no decorrer de sua vida. O estudo mostrou, ainda, que ”o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões”.
No contexto brasileiro, a escolha pela interrupção voluntária da gravidez é o início de uma verdadeira via crucis, com diferentes obstáculos e sofrimentos, a depender da classe social e das condições de cada grávida. Mulheres pobres são mais expostas a complicações de saúde e, por isso, entram com maior frequência nas estatísticas do SUS; mas isso não significa, em princípio, que a interrupção voluntária da gravidez seja mais comum na população mais carente de recursos. De todo modo, seja o risco de vida para as mais pobres, seja a humilhação para as mais favorecidas, todas somos submetidas a um tratamento injusto e desumano quando se trata de interromper uma gravidez.
É preciso trazer à luz a experiência real e diversa das grávidas. Por esse motivo, aqui e em outras ocasiões, tenho usado a expressão “interrupção voluntária da gravidez” e não “aborto”. “Aborto” é termo que não só tem uma carga negativa muito forte, mas também descreve o evento em questão de forma pobre e parcial, pois oculta a mulher grávida e o próprio acontecimento da gravidez. Ora, é sobre uma gravidez que se decide (seja ela legal ou ilegal), e esse processo levado a cabo não só dá origem a uma filha ou a um filho, mas, igual e necessariamente, a uma mãe. É tudo isso que está em jogo, e é sobre tudo isso que devemos falar, se queremos falar de modo correto sobre a questão.
[Artigo publicado na edição 2.076 do Boletim UFMG]
Telma Birchal / professora do Departamento de Filosofia da UFMG
Mariana Lins Costa
Professora de Filosofia (UECE)
“É difícil julgar a beleza; eu ainda não estou preparado.
A beleza é um enigma.”[1]
Há um fascínio particular nas epígrafes – que envolvem toda uma ciência e doutrina particulares, a chamada epigrafia. Oriunda da língua grega, a palavra “epígrafe” significa etimologicamente “escrever acima de”, escrever sobre algo, marcar uma superfície – o que é passível de ser resumido na palavra “inscrição”. Originariamente, estas inscrições eram esculpidas em pedras, metais de todo tipo, argila e colocadas em lápides, monumentos arquitetônicos, estátuas, templos... Na condição de disciplina filológica complementar, essa ciência trata da leitura e interpretação de inscrições antiquíssimas como as egípcias, semíticas, aramaicas, etiópicas, irânicas, gregas, helenistas, romanas.... Já no sentido a nós usual de epígrafe como um texto breve que abre um livro, um artigo, um ensaio ou uma composição poética, este surge no século XVI, tornando-se moda no século XVIII. A epigrafia literária moderna é, assim, um ramo diferente de estudos, refere-se à “doutrina que dá as normas para a redação literária das epígrafes” [2]. Segundo o E-Dicionário de Termos Literários: a “epígrafe é um pré-texto que serve de bandeira ao texto principal, por resumir de forma exemplar o pensamento do autor”. [3]
Dito isto, a epígrafe que abre este escrito consiste numa fala do Princípe Míchkin, personagem principal de O idiota, romance de Fiódor Dostoiévski, do qual Nastácia Filíppovana é também uma das personagens. Esta declaração é proferida quando o Príncipe é inquerido a listar as qualidades da beleza de uma outra personagem, Agláia Ivánovna, quem segundo ele seria quase tão bela quanto Nastácia, embora “o rosto seja de todo diferente”[4]. Em grande medida, esta passagem, tal como exigido a uma epígrafe, “resume de forma exemplar o pensamento” de Dostoiévski, ou mais precisamente a sua compreensão do drama cujo campo de batalha é primeiramente o coração humano.
Dando um passo além na imaginação, poder-se-ia dizer que esta nossa epígrafe serviria, como se à moda da Idade Antiga, para a inscrição na lápide de Nastácia Filíppovna, assassinada nas últimas páginas do romance pelo seu então recém-marido Parfen Rogójin, depois de ter oscilado entre casar-se com ele e com o próprio Príncipe Míchkin, o idiota que dá ensejo ao título; e quem, conforme suspeitam não poucos estudiosos e leitores, caso a desventurada noiva tivesse escolhido por marido teria sido salva do aniquilamento atroz – uma interpretação demasiadamente unilateral quando aplicada ao escritor autodesignado “paradoxalista”.
Ao invés de um simplório “Aqui jaz Nastácia Filíppovna Barachkova”, acompanhado da sua data de nascimento e morte, ter-se-ia então a inscrição na sua lápide de que ali jaz a própria beleza, que sendo um enigma, foi impossível de ser decifrada até mesmo por aquele que é, tanto o filósofo, quanto o “Cristo” do romance. Dando um passo a mais em direção àquilo que pode ser imaginado, é também possível supor que tais palavras, além de epitáfio, serviriam para serem inscritas na estátua padroeira de um templo que renderia homenagem a um heroísmo cujo grande feito é fazer a si mesmo impossível, uma vez que já é, numa série de mulheres da qual Nastácia Filípovna por ser a representação ideal é a sua heroína, quiçá se preferirmos a sua santa – sacrificada de modo brutal, apaixonado e sobremaneira estúpido, com uma única facada, precisa, embaixo do seio esquerdo, e portanto no coração.
Conforme descreve o seu febril assassino, obcecado recém-marido e atormento recém-viúvo a um Príncipe Míchkin, que se encontra uma página antes do seu colapso mental definitivo: “Ela estava sempre metida num livro... E... e eis o que ainda é um milagre para mim: a faca penetrou apenas uns sete centímetros... ou dez... bem debaixo do seio esquerdo... no entanto escorreu apenas meia colher de sopa na camisola; mais não houve”. Ao que responde o “príncipe terrivelmente agitado: ‘Isso [...], isso eu conheço, isso eu li... isso se chama hemorragia interna... Acontece de não sair nenhuma gota. Isso se o golpe for direto no coração...’”[5] A metáfora não poderia ser mais didática: o assassinato, para além de físico, é também simbólico; de modo que seria mesmo um “milagre” se não levasse a facada propriamente dita e apesar da hemorragia interna, que não seria física, permanecesse viva. Que nas últimas linhas o assassino em delírio seja afagado e consolado pelo príncipe em estado de idiotia irreversível é uma imagem bastante reveladora da permeabilidade ou duplicidade entre esses dois personagens.
A representação artística oferecida por Dostoiévski faz suspeitar que o heroísmo, quando na mulher, está mais próximo a certa condição masoquista do que sádica. Sendo o oposto verdadeiro no caso do homem em que o heroísmo está mais próximo ao sadismo, ou seja, diz mais respeito à externalização dos impulsos agressivos ou eróticos dirigidos contra o outro, em vez do outro contra o herói – basta pensarmos na figura clássica do herói de guerra ou no don juanismo (uma espécie de erotismo de conquista). É como se o heroísmo, quando na mulher, trouxesse mais uma marca vitimaria, um acréscimo ao destino do herói que não se adequa tão bem à condição heroica. Numa comparação com o seu correlato masculino na obra dostoievskiana, o herói Nikolai Stavróguin, poder-se-ia dizer que embora ambos sejam imediatamente reconhecidos pelos demais personagens como ideal de beleza (negativo)[6], enquanto o heroísmo de Nastácia causa neles o desejo de subjugá-la (no caso dos homens sexualmente e das mulheres moralmente), o de Stavróguin incita-lhes o desejo de se subjugarem a ele (as mulheres sexual e afetivamente e os homens, moral, intelectual e mesmo politicamente). O gênero interfere na forma do heroísmo, o que é uma expressão da cultura – e não algo como um juízo de valor machista do escritor.
Não é mera casualidade que quando têm inicio os acontecimentos narrados no romance, nas vésperas do seu aniversário de 25 anos, Nastácia já tivesse sido violada sexualmente aos 16 anos; uma violação que é preparada na sua infância, quando, ao perder os pais, teve como “protetor” um rico proprietário de terras que ao vislumbrar a promessa de beleza extraordinária na menina, resolveu oferecer-lhe todos os cuidados (o que incluía não só o custeio de necessidades e luxos, como da melhor educação) até que a pupila atingisse idade suficiente para ser deflorada sem maiores escândalos... para ele. Antes do seu assassínio físico, ela já havia sido aniquilada moralmente por aquele que havia tomado o lugar de pai e professor sob a finalidade última de se tornar o seu abusador.
A autonomia de Nastácia, inerente à sua condição heroica, se revela, assim, sobretudo no fato de que ela se torna protagonista do seu aniquilamento, ao escolher como marido aquele que sabia de antemão que iria assassiná-la – posto ser justamente o aniquilamento o que não poderia evitar. Pois é como se o heroísmo, quando na mulher, impusesse o sacrifício muito antes de que tal como Aquiles pudesse ascender à glória. É como se Édipo, feito mulher, fosse aniquilado antes de decifrar a Esfinge, já que torna-se-ia o seu destino não encontrar a piedade do infanticida, mas antes o contrário: despertar-lhe-ia a perversão sexual ante a situação de vulnerabilidade extrema. O que faz lembrar do poema de Sylvia Plath, “Daddy”, dedicado ao pai fascista (um particular-erótico-familiar que se desvela num misto de patriarcado e niilismo universais): “You died before I had time / [...] / I thought every German was you. /And the language obscene / [...] / I began to talk like a Jew. / [...] / Not God but a swastika / [...] / I made a model of you, / A man in black with a Meinkampf look”[7]. Talvez, então, não seja mera coincidência, que a poetiza estadunidense, mesmo se de modo menos tergiversado do que Nastácia, também tenha optado pelo suicídio, ao optar pela autonomia.
Naturalmente, temos consciência de que estamos tratando de um autor russo do século XIX, a ponto de se poder dizer que o sacrifício de Nastácia Filíppovna já não seria uma necessidade, por exemplo, no Brasil atual. Contudo, não é uma novidade que casos de feminicídio continuam movimentando as estatísticas, que foram inclusive agravadas no período de pandemia; estatísticas que, como diz um dos mais conhecidos personagens dostoievskianos, Raskólnikov, só são insignificantes para quem não está dentro delas. Além disso, é preciso considerar que não é nada incomum que se morra moralmente, como observa um outro personagem dostoievskiano, e, portanto, é preciso considerar a possibilidade de que se seja assassinado moralmente – um tipo de assassínio que, sob certa perspectiva, constituiu-se numa norma de conduta aplicada contra a mulher.
E por que, então, não acrescentar que talvez seja possível ser assassinado ou vilipendiado intelectualmente? Uma suposição que permite interpretar a baixa estatística de mulheres filósofas, de mulheres professoras e mesmo estudantes de filosofia[8], a baixa estatística de mulheres, como disse o marido e assassino de Nastácia, que querem e podem estar sempre metidas num livro, como indício de um feminicídio artístico e intelectual em massa ininterrupto desde tempos imemoriais.
Dedicar estas páginas a essa heroína trágica e santa fictícia é também render homenagem a todas as mulheres que se viram violentadas, reprimidas, impedidas, interrompidas, sacrificadas, aniquiladas unicamente ou especialmente por serem mulheres – cuja beleza é um enigma, como é o caso da beleza do ser humano em geral.
[1] Dostoiévski. O idiota. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 102.
[2] Isoldi, Francisco. “A epigrafia: síntese geral”. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/268314522.pdf
[3] Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/epigrafe
[4] Dostoiévski. O idiota, p. 104.
[5] Idem, p. 675-6.
[6] Sobre este aspecto, ver: https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/dostoievski-e-a-beleza-capaz-de-salvar-o-mundo?fbclid=IwAR0NF_8bwBnDeqMq6RsfoVLfmRs_ydl_pezo2jFXavRvphlk2eRlhqs-kV8
[7] Disponível em: https://www.poetryfoundation.org/poems/48999/daddy-56d22aafa45b2
[8] Ver: Araújo, C. (2019). “Quatorze anos de desigualdade: mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017”. Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, 24(1), 13-33.
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